TEMA DO EVENTO


É possível que o professor assuma uma posição de autoria em relação ao que se passa em sua sala de aula? As questões abaixo servem como inspiração ou provocação para os participantes do III SISEL.

1. O professor é tomado como responsável pela aula que ministra, mas apenas quando vai se criticar essa aula. Ele é chamado a responder pelo que faz quando se trata de uma aula tradicional, antiquada, gramatiqueira, insegura, desconexa etc. Quando, pelo contrário, a aula é considerada bem sucedida, o seu “autor” é mais o autor das obras em que essa aula se inspira e menos o professor em si – dizemos que a aula “estava de acordo com os PCN”, que foi uma aula “interacionista”, que o professor adotou uma postura “bakhtiniana” e assim por diante. Em suma, o professor é visto como “autor” na medida em que transgride uma norma. Mas, paradoxalmente, essa “autoria” é anulada no mesmo instante em que se instaura, já que a crítica ao professor “tradicional” nunca é, de fato, uma crítica a um ou outro professor em específico, mas a toda uma categoria (talvez imaginária) de professores.

2. As situações em que se atribui um autor a uma aula de forma mais inequívoca não podem ser tomadas como situações de ensino propriamente ditas. Os nomes que aparecem na capa de um livro didático são tomados como sendo os nomes dos autores de uma proposta de ensino, mas isto na medida em que são colocados nesse lugar por uma operação própria da esfera de produção e circulação do livro. De maneira semelhante, quando se realizam práticas de ensino no contexto de um projeto ou de uma pesquisa acadêmica, considera-se que o nome do pesquisador corresponde ao nome do autor das aulas que foram elaboradas e realizadas. Pode-se mesmo imaginar que, em situações posteriores, essas aulas sejam tratadas como “obra” de um “autor” quando, por exemplo, a pessoa que as realizou for avaliada por meio de um currículo ou de um memorial. Mas, também neste caso, a associação entre o ensino e o nome da pessoa que responde por esse ensino é uma operação própria da escrita acadêmica, e não do ensino em si. Se uma aula com as mesmas características da que consta em um livro didático ou numa pesquisa fosse realizada apenas em sala de aula, sem jamais ser registrada, discutida ou publicada, continuaríamos a considerá-la como uma “obra” à qual seria necessário vincular o nome de um autor?

3. Ao mesmo tempo, mesmo quando há um nome vinculado a uma proposta de ensino, não se sabe ao certo qual é a participação do dono desse nome na elaboração do que ele veicula. Na esfera editorial, não se sabe quanto do que consta num livro resulta das decisões do autor e quanto resulta de decisões de editores. Não se sabe o quanto as decisões do autor são influenciadas pela própria política editorial da empresa que o contrata exatamente para escrever um livro, nem se sabe ao certo como essas políticas editoriais se moldam a partir das políticas governamentais para o livro didático (já que o governo é o maior cliente das editoras) e a partir da demanda do mercado (já que os professores são os maiores responsáveis pela indicação dos livros). O mesmo se passa na esfera acadêmica: não se sabe quanto do que consta numa pesquisa em ensino resulta das decisões de quem a realizou ou de quem a orientou. Não se sabe como as decisões de quem orienta ou realiza pesquisas em ensino são influenciadas pelas decisões tomadas pelos autores que publicaram livros na área, tomados como fundamentação teórico-metodológica para esses trabalhos. E também não se sabe ao certo como as decisões tomadas por pesquisadores são influenciadas pelas políticas de editoras que potencialmente poderão publicar os resultados desses trabalhos, ou pelas políticas do governo que potencialmente pode endossar esses resultados e adotar essas propostas.

4. A compilação e apropriação de materiais de ensino disponíveis em diversos meios, dos impresso aos manuscritos ou eletrônicos, e mesmo quando voltada para uma nova veiculação dos materiais e não apenas para seu uso em sala, é feita sem remissão clara às fontes – embora a referência aos autores dos textos contidos nas atividades (crônicas, poemas, letras de música etc.), e mesmo aos autores de certas definições teóricas, é mantida. Este fato leva a crer que, quando se trata do ensino propriamente dito, a percepção da autoria de um determinado discurso é diferente da que funciona quando se trata de outros tipos de discurso – literários, jornalísticos, acadêmicos. Como consequência, os lugares em que se tomam decisões relevantes sobre o que será feito numa aula de línguas tornam-se difíceis de recuperar quando se observa apenas o produto dessas decisões – o que não deixa de dificultar da participação do professor nelas.

5. Finalmente, as dificuldades de tempo e as fragilidades da formação do professor, se forem reais, não são motivo para se aceitar que ele deixe de ser autor do seu ensino – assim como não aceitaríamos que, por má remuneração ou má formação, o médico que vai nos operar conduza a cirurgia lendo um manual – por mais que a qualidade deste tenha sido rigorosamente controlada pelo governo e atestada por especialistas.

Questões como essas constituem o pano de fundo das discussões que o Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL-ILC) e a Faculdade de Letras do Campus Universitário de Castanhal propõem aos participantes do III SISEL. Em vista de problemas como os expostos acima é que se pergunta aos que comparecerão a este seminário, ainda uma vez: faz diferença ser autor da aula que ministro?